quarta-feira, 18 de maio de 2016

Ó, os meus sapatos

Esse é o diálogo com um senhor que se considera louco. Não sei o nome ou a idade, a conversa foi de tal forma que nem me lembrei de perguntar, mas não acho que tivesse muito mais que 50.
E isso foi o que aconteceu ontem em um intervalo de 15 minutos ou menos:

Caminhada no silêncio, muito silêncio, mais silêncio, até que...

- Boa noite, moça.

- Boa noite.

- Ôôôôô moça! Não atravessa a rua olhando o celular não, você pode cair. Pode até um carro “vupt”, te levar.

- O senhor tem razão. Muito obrigada!

- Tenho é? Ainda tenho? Porque eu to louco. LOOOUCO (deu uma bela risada).

- Oi?

- Eu to louco. Loucão, sabe? Bem louco. Louco de ir no psiquiatra. De deitar e ficar falando "dos problema", porque to cheio. To fazendo coisa de gente louca. Você quer uma coisa e faz outra, aí você não quer mais, aí você quer de novo. Loucão. Eu paro e “NOSSA, O QUE QUE EU FIZ?”. Essas coisas de louco, falar sozinho, falar com estranho, to falando aqui com você. (Depois de um segundo de silêncio) Ô moça, você não fica com medo não?

- Depende, você fará algo que eu deva ter?

- To aqui falando com você, gente estranha. To louco, to falando até com os meus sapatos!

Foi quando olhei para os pés dele e ele estava de chinelo e pensei “Tadinho, deve estar louco mesmo” e respondi:

- Se for só isso, por enquanto não...

Eu sorri e já estava seguindo reto, mas ele nem me ouviu e continuou:

- ...E os sapatos respondem. Ó, fala com ele! (ele sorriu e levantou os pés). Viu? Mas as pessoas não. Sabe quando todo mundo te olha e acha que você tá louco? É ruim. Sabe? As pessoas acham que você é loucão e aí você acha também porque você tá mesmo louco.

Droga, ele mexeu comigo quando disse que as pessoas não respondem. Eu queria seguir, tava com frio, no meio de uma rua desconhecida à noite, realmente eu estava falando com um desconhecido... Mas eu odiaria ser a pessoa que não responde. Então eu continuei ali e respondi:

- Sim. Todos os meus amigos acham. Mas o senhor sempre vai ser louco pra alguém. Ser “normal” é fazer o que as pessoas esperam, e as pessoas esperam coisas diferentes, né? Não conheço gente feliz que seja normal. Não é ruim, não. Ruim mesmo é passar frio, o senhor tá com frio? Tá com fome? Senhor sabe que tem abrigo, né? Pra noite assim é bom.

- To não. To quentinho, ó, de sapato.

Olhei o chinelo de novo...aquilo me deixou um pouco confusa sobre o que fazer, mas aí ele continuou:

- Gosto “desses lugar”, não. Lá só tem gente louca. Aqui tem eu, meu sapato, você, o céu. To com “uns papelão”, com roupa. Só to louco mesmo, né? A gente tá normal e “pum”, tamo louco (ele gargalhou olhando pro céu). Aaah, mas aí eu penso, será que eu não era louco antes também?

- Não sei se o senhor é louco. Talvez só esteja carente, quando ficamos carente fazemos coisas bem bobas pra chamar atenção ou pra não se sentir sozinho. Às vezes o senhor só quer alguém pra conversar, né? Que responde. A solidão às vezes deixa a gente meio assim...senhor já viu “Náufrago”?

- O que?

- O filme “Náufrago”, do Tom Hanks, que ele fica sozinho na ilha lá.

- Quem tá sozinho?

- Ahn (é, demorou pra cair a minha ficha que ele não viu o filme e não sabia quem era Tom Hanks). Nada, desculpa! Mas é...então, o que eu queria dizer é que talvez o senhor não precisa de um psiquiatra, só precisa de um amigo, né?


- Eu tenho ó, os meus sapatos!

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Escrito em maio de 2016