Sempre que chego a Lorena a
primeira coisa que faço é trocar de roupa. Visualmente falando me torno uma
pessoa completamente diferente do que sou hoje em São Paulo quando chego a
Lorena, volto a ser a “Karen com 15 anos”, pois uso as roupas dessa época, que no
geral são camisetas e bermudas de colégio. Na verdade gosto da despreocupação
que Lorena me passa quando se trata de vestimenta. Em São Paulo me acostumei a
sair com roupa para todo tipo de ocasião porque nunca sei como será o dia,
então visto roupa para reunião de trabalho, atividade esportiva, festa e que possa
se tornar um pijama facilmente se precisar dormir fora. Sem contar a variação
climática, o que me faz sair com várias camadas para enfrentar chuva, sol e
quem sabe, considerando as coisas como estão, até neve.
Então mais uma vez eu chegava a
Lorena, desta vez para passar o Dia das Mães com a minha mãe. Cheguei sábado
bem cedo e mal havia deixado as minhas coisas em casa e minha irmã já havia
saído para levar o então namorado dela, hoje marido, para a rodoviária para que
ele pudesse também passar o fim de semana com a mãe dele em São Paulo.
Tão logo troquei de roupa, já saí
correndo em direção à rodoviária para me despedir do meu cunhado. São uns 20
minutos de caminhada, mas no final, mesmo saindo às pressas, acabei não
chegando a tempo de “dar tchau” para ele, porque no meio do caminho conheci a Bertina.
Já estava na rua da rodoviária
quando encontrei uma senhora (de uns 65 anos) catadora de recicláveis com
aqueles carrinhos de mão invertido, ou carroça, como ela mesma chamou. Em São
Paulo encontro o pessoal puxando isso em quase todo bairro, é algo “comum”, mas
em Lorena eu vi dois, um moço, um pouco antes de encontrá-la, e ela. E não sei
se sempre fui negligente, mas não me lembrava de ter visto esse tipo de carroça
antes em Lorena – e encontrar um atrás do outro foi o que me chamou a atenção,
o que em São Paulo talvez eu nem notasse. No interior já vi várias carroças
puxadas por cavalos, jegues ou mulas e isso era completamente comum – mas por
pessoas me parecia uma “novidade vinda da capital”.
Meu grande defeito de não saber
disfarçar quando eu fico concentrada em algo, me fez ficar encarando-a,
filosofando acerca do peso, do cansaço, do cheiro, do desconforto e de que parecia
muito triste ver uma senhora, num sábado tão bonito, trabalhando em algo tão
penoso. Confesso que quando estou com pressa eu me desligo do mundo e fico o
caminho todo mentalizando como chegar no horário e eventualmente, quando vejo
que não vou chegar, pensando em como me explicar, mas aí eu a avistei e me
distraí ainda mais quando ela me notou e ao invés dela se sentir incomodada,
como eu esperaria, foi tão simpática e me deu “BOM DIA!”.
Assim, feliz!
Ela sorriu e foi quando notei que
eu devia estar descaradamente encarando-a.
Estávamos andando lado a lado e a
segunda coisa que eu disse (após responder com outro “Bom dia!”) foi: A senhora
quer ajuda?
E é lógico que ela queria.
Era um sábado realmente bonito, a
rua estava tranquila, então ela colocou a carroça no chão e trocamos de lugar.
Desequilibrei-me pra levantar a
carroça e começar a puxá-la, ela esperou eu me ajeitar e começou a andar do meu
lado. Fomos conversando o caminho todo até a rodoviária, nos apresentamos e ela
perguntou de onde eu era e o que fazia ali. Falei do Dia das Mães e ela contou
sobre a sua neta, que também se chamava Karen.
- E porque a senhora não está com
ela aproveitando o Dia das Mães?
- Ah, eu vou aproveitar, mas é só
amanhã! Hoje ainda trabalho pela mesma razão que todo mundo, né? A gente tem
que viver e o dia hoje tá bom pra isso!
- Pra viver?
- Pra viver também, até porque
não dá pra pular o dia pra isso. Mas digo para trabalhar.
A conversa continuou leve por
todo o percurso: uma linha reta de uns 10 minutos de caminhada. E apesar disso,
eu falava quase no automático enquanto dividia os meus esforços entre a
necessidade física de carregar aquilo e a mental de entender tudo o que
ocorria:
Era um trecho minúsculo e todas
as pessoas que estavam ou passavam na rua olhavam encarando como provavelmente
eu estava fazendo quando a encontrei. Isso é um pouquinho constrangedor, ao
menos eu não me sentia confortável com a situação, então resolvi dar “Bom dia!”
sempre que alguém olhava fixamente, como a Bertina. Achei que tinha sido bacana
da parte dela então copiei – a diferença é que ninguém respondeu. Mas se fosse
só isso, dava para se acostumar, mas como achar normal uma pessoa dentro de um
carro confortável buzinar e abaixar o vidro da janela só para dizer “VOCÊ ESTÁ
ATRAPALHANDO A RUA, SUA IDIOTA!” enquanto te ultrapassa passando bem rente como
se ameaçasse te atropelar? Eu confesso que queria mandar o carona à merda, mas
ignorei porque ela – a Bertina – ainda estava falando normalmente como se nem
tivesse notado aquilo. Acho que dos três carros que passaram, três buzinaram
freneticamente. Tá que eu devia estar andando bem lento e meio torto, mas não é
fácil carregar aquilo e direcionar, mas a rua é larga, na verdade é uma avenida
e tinha espaço à vontade para os carros passarem, os três juntos, aliás – ou
seja, transito nenhum – e juro que não entendi a necessidade disso.
Então a gente caminhava, alguns
encaravam, alguns ignoravam o “Bom dia!”, alguns buzinavam, alguns ofendiam e a
nossa conversa continuava e meus pensamentos também.
“Se em Lorena que passaram três
carros e dez pessoas eu já me senti tão mal por ver tanta careta, imagina em
São Paulo? Como se sentem?”
A Bertina, na verdade, parecia
normal. Pensei em perguntar sobre isso, mas fiquei com receio de ser rude ou mesmo
de cortar sua alegria enquanto contava sobre sua neta e falava sobre internet e
tecnologia, assunto que ela entendia bem melhor do que eu.
Aliás, ela entrou nesse assunto
porque antes eu havia comentado como puxar aquela carroça era algo pesado, que
ela devia estar cansada, e que eu não sei se conseguiria andar com aquilo por
tanto tempo quanto ela provavelmente ainda iria andar.
- Ah isso aí é porque os jovens
hoje estão mais acostumados com a internet, ficam sentados e usam mais o
cérebro que os braços, mas é bom, porque hoje a sociedade precisa muito mais de
alguém que saiba mexer em um Photoshop
ou em um Linux do que quem sabe puxar
carroça! Já eu desde criança uso os braços, as pernas, mas se quero ver vídeo
no Youtube demoro anos pra conseguir
digitar! – e deu uma risadinha parecida com um “hehe”.
Achei bem atípico ver uma senhora,
que até pouco tempo antes estava puxando uma carroça, falando de Photoshop, Linux e Youtube – achei ainda
mais incrível porque ela pressupunha que eu era dessa geração jovem e “antenada”
que se entende muito bem com a tecnologia e estava achando igualmente atípico
ver uma jovem que mal sabia mexer em um celular.
Era um pouco irônico que eu, a “jovem”,
era a pessoa desinformada e ela, a “senhora”, falava com tanta propriedade de
programas que eu conhecia, mas não dominava – o que fui extremamente sincera
com ela:
- Não sei mexer nem no Photoshop nem no Linux, mas gosto do Paint.
– eu ri, mas é a verdade.
- É... amiguinha. Paint acho que também não dá muito
futuro não! – rimos juntas, mas é: até agora, não deu mesmo.
A gente se despediu quando
chegamos à rodoviária e ela seguiu como se nada houvesse mudado – o que pode
ter sido só uma impressão porque ela sempre manteve a mesma postura sobre todo
o momento que compartilhamos. De qualquer forma, para mim mudou. Bastante. Me senti meio "Gugu Liberato" mas fiquei feliz em conhecê-la e acho que ela ficou feliz em não ter que carregar a
carroça por um tempo. Então saímos as duas sorrindo. O resto do meu dia
continuou incrível, mas fiquei pensando sobre o que ocorreu.
Encontrei a minha irmã e seguimos
nosso caminho, sem ninguém encarando “com a cara torta”, ninguém me chamou de
idiota e resolvi fazer o teste do “Bom dia!” e adivinhem? Todos responderam.
Escrito em maio de 2010